quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Arte Abstrata. Mel Gooding


NOVAS MANEIRAS DE DECLARAR O QUE É O CASO
 
Toda arte é abstrata, no sentido de que toda arte se envolve no mundo e nos aspectos abstratos dele para nos apresentar um objeto ou acontecimento que aviva ou ilumina nossa apreensão do mundo. “O mundo é tudo que é o caso”, escreveu Ludwig Wittgenstein, no início de um projeto filosófico que começou como um esforço para descrever logicamente o mundo e terminou com reflexões a respeito da natureza problemática da própria linguagem que devemos usar quando formos descrever o que quer que seja.
O progresso de uma arte da representação para a da abstração de certa maneira ocorreu paralelamente a essa busca moderna quintessencial por um novo tipo de verdade. “Tudo que é o caso” inclui a natureza e a sociedade, o ambiente construído, as estruturas da religião, da arte e da ciência, e todos os maravilhosos e mundanos atos, pensamentos e emoções, especulações e imaginações que compreendem uma cultura humana complexa.
A partir dos primeiros anos do século xx, pintores e escultores nas tradições européias de arte, mais do que em qualquer época desde a Renascença, buscaram de modo consciente formas radicalmente novas de representar sua experiência do mundo. Eles se lançaram à criação de uma arte que revelaria aspectos da realidade que pareciam inacessíveis às técnicas e convenções da arte figurativa.
A grande e duradoura idéia de que a pintura e a escultura poderiam retratar a realidade do mundo por meio da imitação iluminadora (mimese), ou da representação ilusionista de fenômenos naturais, foi de repente posta em dúvida. Muitos artistas viam a representação figurativa como uma limitação a sua capacidade de representar as realidades da experiência, incluída a experiência espiritual, com o tipo de intensidade ou clareza que revelaria sua verdadeira natureza. Além disso, os artistas sentiram necessidade de levar em consideração realidades novas então reveladas pela ciência, dinâmicas recentemente descobertas pela matemática e pela física, novas idéias em psicologia, desenvolvimentos pós-darwinianos na biologia, na religião e no que se costumava chamar de “filosofia natural”. Eles estavam sensíveis também à nova política da social-democracia, do comunismo e da liberdade individual. Estavam conscientes das grandes mudanças na tecnologia industrial, do início dos vôos tripulados, do motor a combustão interna, da fotografia e do cinema. As cidades nas quais viviam estavam numa condição de transformação dinâmica. Tudo isso trouxe como conseqüências a rejeição das velhas formas de arte que buscavam imitar a aparência das coisas e a invenção de novas formas que revelariam as relações ocultas entre as coisas. Objetos são objetos; eles podem ser retratados, mas representar as relações dinâmicas entre os objetos exigia uma linguagem visual abstrata.
Isso não significa que os artistas no início do novo século compreendessem plenamente, ao modo dos teóricos, cientistas e outros especialistas, os variados desenvolvimentos intelectuais, espirituais e tecnológicos que estavam ocorrendo. Nem precisavam. Os artistas têm seu próprio trabalho a fazer, pesquisas intuitivas específicas a realizar. O que havia era que algo de muito excitante estava no ar e que a palavra novo se aplicava a quase tudo que estava acontecendo. Ao lado da palavra “moderno”, ela se tornaria uma das palavras-chaves afirmativas do século, um talismã verbal, tanto para os artistas como para os críticos. Este livro enfocará aquilo que inúmeros artistas muito diferentes do século xx, trabalhando em lugares diferentes com diferentes idéias e intenções, produziram em resposta à grande imposição modernista “Faça o novo!”.
A originalidade criativa, para os artistas modernos, estava sujeita aos imperativos de autenticidade: resposta às exigências da vida interior, engajamento verdadeiro na realidade externa e liberdade de enunciação. Essa ênfase sobre a experiência individual tornava inevitável que as obras assumissem muitas formas diferentes e que o que pensavam sobre o significado e os propósitos da arte fosse correspondentemente diverso. Efetivamente não houve nenhum “movimento abstrato” enquanto tal, mas muitas manifestações de uma tendência poderosa da arte moderna para longe da representação de objetos reconhecíveis no espaço pictórico (não importa em que estilo ou maneira) e em direção à apresentação da pintura ou da escultura como um objeto real no espaço real. 
Alguns artistas acreditavam que tal objeto poderia mesmo emanar uma espécie de energia, sensual ou espiritual e ativar o espaço ao seu redor. A disposição de linhas, os formatos e as cores na tela, ou as formas esculturais puras no espaço, tendo sido abstraídas da natureza, operavam agora diretamente sobre o espectador, como faziam os fenômenos naturais da luz, da cor, da textura e do movimento. Alguns sentiam que a obra de arte abstrata poderia induzir a um sentimento do numinoso ou do transcendente e ocupar um lugar na vida espiritual entre os objetos sagrados ou os icones do passado. (páginas 6 e 7)