sábado, 29 de setembro de 2012

O Ateliê de Giacometti. Jean Genet


  • Por Bernardo Carvalho.

    "Jean Genet (1910-1986) foi um escritor dos mais peculiares. Seu texto é resultado do confronto entre uma forma bem escrita, muitas vezes rebuscada e floreada, e um conteúdo embrutecido, marginal.

    Flores para falar de sangue. Uma concepção de literatura original e das mais contraditórias sobretudo aos olhos da tradição dos chamados "tough writers", os durões e seguidores, que acreditam que a autenticidade literária se conquista com uma linguagem que mimetize a mais crua realidade.

    Conhecendo na própria carne a brutalidade de uma vida entre proscritos, na prisão, no roubo e na prostituição, Genet militou pela causa dos excluídos e injustiçados (dos palestinos aos Panteras Negras), mas sempre quis escrever bonito. Tinha horror do miserabilismo. Queria arrancar a beleza da morte e da margem, para ele a única beleza verdadeira, por trás das aparências. Está aí o "milagre da rosa".

    O pequeno "O Ateliê de Giacometti" explica, com o auxílio das obras do artista suíço (1901-66), o que é essa beleza que o escritor buscava pela literatura e que reconheceu no ateliê do pintor e escultor, embora este, ao contrário de Genet, a buscasse pelo despojamento da forma.

    "A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine", escreve Genet.

    Em 1954, Alberto Giacometti o encontrou num café em Paris. "Foi a calvície do escritor que o atraiu. Giacometti tinha especial interesse pela estrutura das cabeças, e a ausência de cabelos ajudava a revelá-la", escreve a artista e tradutora Célia Euvaldo na orelha do livro.

    Entre 54 e 58, Genet posou para vários retratos. "O Ateliê de Giacometti", publicado pela primeira vez em livro, com fotografias de Ernst Scheidegger, em 63, é mais do que o relato desses encontros. É o pretexto para uma reflexão sobre essa "ferida que ilumina".

    Costuma ser desconcertante a crítica de arte que, em geral, para falar de obras abstratas, tenta aproximá-las de uma imagem reconhecível, fazendo comparações como quem procura figuras nas nuvens. Genet não se aproxima da obra dizendo que ela parece isso ou aquilo. Uma arte que está cheia de vida não pode fazer a imitação da vida. Não pode representar, porque simplesmente é.

    Diante da estátua de Osíris no museu do Louvre, Genet diz: "Tive medo porque se tratava, sem dúvida nenhuma, de um deus. Certas estátuas de Giacometti provocam em mim uma emoção bem próxima desse terror, e um fascínio quase tão grande (...). Uma de suas estátuas num quarto, e o quarto vira um templo. (...) Na frente dessas mulheres tenho o sentimento de estar diante de deusas -deusas e não a estátua de uma deusa- (...) não conheço braço mais intensamente, mais expressamente braço do que aquele".

    O acúmulo de vida que vê nas obras de Giacometti já não lhe permite falar de representações: "Os rostos pintados por Giacometti parecem ter reunido tamanha vida que já não lhes resta nenhum segundo a viver, nenhum gesto a fazer, e (não que tenham acabado de morrer) conhecem enfim a morte, pois um excesso de vida ali está acumulado. (...) Estão no ponto extremo onde a vida se assemelha à matéria inanimada".

    Assim também, Genet diz do seu próprio retrato: "Vem ao meu encontro, funde-se em mim e se precipita de volta na tela de onde partira, com uma presença, uma realidade e um relevo terríveis. (...) Quando tiro o quadro do ateliê para olhá-lo, fico incomodado, pois sei que estou tanto na tela como na frente dela, olhando-a".

    Para o escritor, é esse ponto em que a vida se assemelha à morte que mais impressiona, porque só daí, dessa ferida, na mais profunda solidão, onde as coisas são apenas o que são, pode sair alguma verdade e alguma beleza. "Toda obra de arte que queira alcançar as mais grandiosas proporções deve, com uma paciência e uma aplicação infinitas desde os momentos de sua elaboração, descer aos milênios, juntar-se, se possível, à noite imemorial povoada de mortos que irão se reconhecer nessa obra."

    Nessa arte que busca o próprio ser do objeto, e que o isola em sua unicidade, sua solidão, a imagem que está sobre a tela e o objeto real que ela representa se fundem. A solidão do objeto se comunica com a solidão mais profunda do espectador: ""Estou só", parece nos dizer o objeto (...). Se sou apenas o que sou, sou indestrutível. Sendo o que sou e sem reservas, minha solidão conhece a sua"."

    Para Genet, é só nessa ferida em que os vivos e os mortos se comunicam que os homens podem vislumbrar por fim o que os une, o que lhes é comum e o que têm de mais irredutível: "A solidão de ser exatamente igual a qualquer outro"."

    Livro: O Ateliê de Giacometti
    Autor: Jean Genet
    Tradutora: Célia Euvaldo
    Editora: Cosac & Naify
    (96 págs.)


    • Por Bernardo Carvalho (20/05/2000 - Folha de S. Paulo | Ilustrada) - Deuses proscritos.


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sebastião Salgado (Photo Poche - série)


À luz da história
Foi em janeiro de 1985, na editoria de fotografia do jornal Libération, que Sebastião Salgado, de volta de sua primeira viagem ao Sahel, veio mostrar os contatos de suas fotos sobre a seca e a fome que, mais uma vez, dizimavam aquela região da África.
Imagens em preto e branco de crianças, mulheres e velhos esquálidos a quem os voluntários dos Médicos sem Fronteiras tentavam levar socorro. Salgado partira com os “french doctors”, para testemunhar. E, numa época em que as revistas não compreendiam por que ele não havia fotografado em cores, era para um jornal que ele se voltava. Tudo isso, simplesmente, para lembrar que a finalidade primordial do fotógrafo Salgado é informar e, por conseguinte, publicar suas imagens na imprensa, ainda que, mais tarde, o livro e a exposição façam suas imagens existirem de outra forma, conferindo-lhes leituras e amplitudes diversas.
Crianças morrendo de malnutrição foram muitas vezes um dos temas do fotojornalismo dividido de certa forma entre o espetacular e o testemunhal, entre a consciência limpa e o documento bruto. E, numa época em que Serge Daney via “o humanismo desaparecer em prol do humanitário”, era preciso desconfiar do impacto e do sentido das imagens que chegavam a nós depois de tantas páginas duplas coloridas, com olhares esgazeados, moscas e barrigas inchadas, litania ritual no papel couché, banalização do horror e confissão de impotência. Daquela vez, entretanto, era diferente.
A evidência estava ali: a forma das imagens de Sebastião Salgado derivava de outra abordagem, que impunha respeito e dignidade. Para além da simples força plástica, interrogavam nossa maneira afoita de ver, nossa vontade de engolir os fatos. Sua precisão, e, por que não, beleza, perturbava-nos, pois se opunha radicalmente aos clichês em voga, forçando-nos a enxergar. Salutares, portanto. Era evidente que cumpria publicar as imagens de Salgado, a fim de satisfazer uma necessidade real da informação e da consciência. (p.5, por Christian Caujolle)
 
Sebastião Salgado foi o primeiro fotógrafo brasileiro a integrar a coleção Photo Poche. Nascido em 1944 em Aimorés, Minas Gerais, estudou economia, mas logo se interessou pela fotografia e seu potencial expressivo e político. Trabalhadores e crianças em situação de risco, êxodos e rituais fúnebres são imagens que se tornaram símbolos de seu modo único de retratar e denunciar os limites da condição humana. Com uma estética precisa e uma solidariedade incondicional aos sujeitos que registra, sua produção fez dele um fotógrafo premiado em todo o mundo.

Texto de Christian Caujolle
64 fotografias em preto e branco
Biografia e bibliografia 






quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Nome do Vento. Patrick Rothfuss

Por Will Duarte. (de O livreiro maluco)  
 
“Já resgatei princesas de reis adormecidos em sepulcros. Incendiei a cidade de Trebon. Passei a noite com Feluriana e saí com minha sanidade e minha vida. Fui expulso da Universidade com menos idade do que a maioria das pessoas consegue ingressar. Caminhei à luz do luar por trilhas de que outros temem falar durante o dia. Conversei com deuses, amei mulheres e escrevi canções que fazem os menestréis chorarem. Vocês devem ter ouvido falar de mim.”

Demorei semanas para escrever essa resenha. Simplesmente não conseguia escolher que palavras usar para mostrar o quão fantástico é O Nome do Vento. Tal obra irá deleitar qualquer fã da literatura fantástica e claro, também aqueles que não o são. Patrick Rothfuss criou um novo e belíssimo mundo fantástico, com novos idiomas, seu próprio sistema monetário e povoado por mitos e seres fabulosos, onde nenhum é tão interessante quando o próprio protagonista da obra.

“Meu primeiro mentor se chamava de E’lir, porque eu era inteligente e sabia disso. Minha primeira amada de verdade me chamava de Duleitor, porque gostava desse som. Já fui chamado de Umbroso, Dedo-Leve e Seis-Cordas. Fui chamado de Kvothe, o Arcano; e Kvothe, o Matador do Rei. Mereci esses nomes. Comprei e paguei por eles."

Kvothe, esse é o seu verdadeiro nome, mas apenas um dos muitos pelos quais ele ficou conhecido. Aos poucos a vida do personagem vai sendo revelada, a partir de sua infância junto com seus pais em uma trupe itinerante, chamada os Edena Ruh. E é ao conhecermos sua infância que entendemos o motivo do “mito Kvothe” nascer. Tudo começa com o encontro de sua trupe com um misterioso e perigoso grupo, que até então era considerado apenas como mais uma lenda, uma história para assustar crianças. Tudo começa no encontro de Kvothe com o Chandriano.

Tentei adiantar o mínimo possível sobre o enredo do livro, pois como aconteceu comigo quero que vocês possam descobrir todos os detalhes sozinhos e se surpreender com eles. O Nome do Vento não é um livro para ser devorado, que se possa ler em um ou dois dias, mas é um livro que deve ser apreciado, por vezes estudado.

Por diversos momentos cheguei a me emocionar com a estória de Kvothe, que apesar de incrível também é  triste. A narrativa adotada por Patrick é bastante descritiva, mas o modo como a autor decidiu empregá-la torna impossível que o leitor se canse com a mesma. O mundo criado por ele é fantástico, único e incrivelmente interessante, assim como Kvothe, um dos personagens mais fantásticos da literatura que tive o prazer de conhecer.

Não poderia deixar de citar o incrível trabalho feito pela Editora Sextante (Após um acordo entre Sextante e Arqueiro o livro passou a pertencer a segunda editora.) na capa e diagramação do livro. Começo falando sobre a lindíssima capa pelo artista Marc Simonetti, o mesmo artista responsável pelas capas da série As Crônicas de Gelo e Fogo no Brasil. E a diagramação que, apesar de simples, cai como uma luva para o livro, com suas páginas amareladas e a separação entre os capítulos. Aproveito para destacar também a ótima tradução de Vera Ribeiro.

O Nome do Vento é o primeiro livro da trilogia A Crônica do Matador do Rei, e serve apenas como um aperitivo do que estar por vir. Ao terminar de ler a obra, completamente maravilhado, tive certeza de uma coisa. Esse livro serve apenas como uma introdução para uma estória muito maior é fantástica que, sem dúvida, encontraremos nos outros dois volumes da série.

Patrick Rothfuss

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

em busca de Klingsor. Jorge Volpi

 
O livro em busca de Klingsor foi escrito pelo mexicano Jorge Volpi e publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2001. No verso da edição brasileira, lê-se o comentário do autor cubano Gabriel Cabrera Infante sobre o romance: (...) "É uma obra exemplar da arte que quero denominar "ciência-fusão". Fusão da ciência com a história, a política e a literatura para dar forma a isto que chamamos de cultura". Palavras muito apropriadas para a obra que, em 1999, recebeu o Prêmio Biblioteca Breve.

O romance se desenvolve em meio a fatos históricos e científicos, baseados em fatos reais, do século XX. O tenente Francis Bacon - consultor científico das forças de ocupação dos Estados Unidos na Alemanha e físico de formação - desembarca na Alemanha no ano de 1946 na gelada cidade de Nuremberg, que estava em ruínas devido aos bombardeios aliados. A cidade sediava as execuções dos líderes nazistas em contraposição a um passado não muito distante, quando Nuremberg sediou os festivais do partido nazista. 

Bacon havia sido enviado à Alemanha para capturar ou ao menos identificar Klingsor, não o personagem da ópera de Wagner, mas o influente cientista do III Reich, que teria comandado o grupo de cientistas encarregado de construir a bomba atômica para a Alemanha nazista, além de toda a produção científica do Reich - incluindo os experimentos que utilizavam judeus como cobaias humanas. A tarefa de Bacon não parece muito complicada, se não fosse o mistério envolvendo a identidade de Klingsor.

O tenente (juntamente com o leitor) precisa, antes de qualquer coisa, descobrir se Klingsor realmente existiu, seguindo pistas difusas e não muito esclarecedoras. Conforme o leitor avança na leitura, percebe que Klingsor é o codinome de um cientista, ou talvez de um grupo de cientistas, que assessorava Hitler diretamente. Seja lá o que for, Klingsor, através da ciência, teve grande poder e influência no mundo nazista.

Talvez Klingsor tenha realmente sido um cientista importante, que perambulava entre as grandes personalidades da ciência daquela época, como Einstein e von Neumann. Poderia até mesmo ser um deles, talvez Werner Heisenberg - como acreditava o matemático Gustav Links e narrador do romance - cuja posição ambígua em relação ao nazismo é discutida até hoje.

Em seu romance, Volpi envolve grandes cientistas do século XX na busca do intrigante Klingsor e mostra a rede interminável de ações e reações da ciência no mundo moderno. O leitor é freqüentemente confrontado com aspectos interessantes do "fazer ciência" e é levado a observar que a verdade científica não é um simples produto de laboratório, impessoal e neutro, mas sim, influenciada pela vontade dos próprios cientistas, resultado de um conflito de verdades. 

A obra de Volpi está voltada para a vida de seus personagens, e isso não ocorre por acaso. Explorando a vida das personagens, sobretudo a dos cientistas, ele mostra que as relações humanas entre si e com o seu ambiente têm um papel determinante nos resultados da ciência. 

Einstein está entre os físicos geniais do século XX que formam a teia de atores do tumultuado mundo científico da obra de Volpi e, apesar de não ser o personagem principal, tem um papel importante nas discussões que afloram em alguns capítulos do livro sobre a ciência, os cientistas e as conseqüências de suas ações. 

Assim como outros grandes cientistas judeus perseguidos pelos nazistas, Einstein foi alvo de uma campanha contra a "ciência judia". É possível que, em parte, a Alemanha não tenha conseguido desenvolver uma bomba atômica devido a esta campanha. Em 1945 explodiram as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, e Einstein foi culpado por alguns por ter descoberto a relação entre massa e energia que, na opinião do físico e escritor Stephen Hawking, seria o mesmo que culpar Newton pelas quedas de aviões por ter descoberto a gravidade. A Alemanha nazista expulsara muitos cérebros importantes de seu território e, em 1932, quando foi informado que os nazistas haviam subido ao poder, Einstein renunciou à cidadania alemã e foi para o Institute for Advanced Study, em Princeton, nos EUA.

Volpi trata dos bastidores e não somente dos resultados da ciência, que ele mostra que estão além das bancadas dos laboratórios. Esse tipo de abordagem é importante porque permite uma interpretação mais crítica do desenvolvimento científico e tecnológico.