quarta-feira, 30 de junho de 2010

Educação sentimental em Proust. Philippe Willemart



"O não sabido e o sabido em psicanálise e literatura. Miriam Chinalli

Resenha do livro: “Educação sentimental em Proust”, de Philippe Willemart. Ateliê Editorial. Cotia, 2002.

"Uma princesa nasce extremamente bela na corte de um rei e de uma rainha de um país longínquo. Ao crescer, sua beleza atrai de tal forma os homens que Vênus, abandonada em seu templo e evidentemente enciumada, chama seu filho Eros, também conhecido como Cupido, e lhe pede para castigar Psique - é este o nome da princesa - casando-a com o mais feio de todos os homens" (p. 17). É com um resumo do mito grego de Psique que Willemart inicia sua bela obra. Esse mito inspirou Lacan (O Seminário, Livro 8. Rio de Janeiro, Zahar, 1992) na construção de seu conceito de alma ou sujeito, que sai em busca do desejo impossível do Outro. A alma, ou Psique, sofrendo à procura do seu bem-amado representa o inconsciente, simbolizado pelo longo caminho constituído dos obstáculos e das provas que Psique encontrará em seu percurso e que lhe permitirão reencontrar Eros.


A obra de Willemart nos mostra que a psicanálise aprendeu a conversar com as outras ciências desde que foi criada. Freud não se privou de fontes como a literatura, a medicina, a filosofia, a antropologia, etc. Também Lacan não deixou de beber nas fontes da lingüística, da filosofia, da matemática, da lógica, da topologia, da literatura, etc. Esses fundadores não paravam de consultar outros campos do saber e, como é comum aos psicanalistas que escrevem, a interdisciplinaridade é até hoje prática costumeira e necessária.


Utilizando o referencial da psicanálise, Willemart examina algumas passagens de O caminho de Guermantes. Afirma: "detectando um saber impensado no narrador proustiano, procurarei Eros à minha maneira" (p. 18).


O título da obra, que traz uma referência explícita ao romance de Flaubert, Educação sentimental, sublinha a filiação flaubertiana de Proust. Denuncia, ao mesmo tempo, a falta de originalidade dos livros de auto-ajuda, criados à sombra da literatura, sem nunca conceder às grandes obras algum crédito.


O inconsciente genético


Na introdução, Willemart examina as diferenças entre "inconsciente estético", definido por Jacques Rancière (L'inconscient esthétique. Paris, Galilée, 2000), o "inconsciente do texto", conceituado pelo crítico literário Jean Bellemin-Noël (em 1971), pelo psicanalista André Green (em 1973) e pelo escritor Bernard Pingaud (em 1976) e o "inconsciente genético", conceituado por ele nos anos 80.


Em Littérature 52 (Paris, Larousse, 1983), Willemart prolonga e reforça o conceito de "inconsciente do texto", entendido como trabalho do inconsciente numa visão lacaniana: "Em primeiro lugar, o autor não é uma mônada isolada que pudesse reivindicar o que ele produz como sendo algo exclusivamente seu; como qualquer homem, ele é a culminação de uma série de desejos de sucessivas gerações, o fruto de um momento cultural preciso. Em segundo lugar, ele utiliza uma língua carregada de sentidos que o domina e controla mais do que ele pensa. E, por fim, essa mesma língua, uma vez colocada no papel e através da narrativa, força arranjos e desloca elementos tanto no nível do sintagma quanto do paradigma" (p. 19).


A partir dos anos 80, Willemart e outros críticos literários já não vão afirmar, como Freud, que a escritura é uma forma de expressão das pulsões ou do desejo do artista. A literatura ou qualquer outra forma de arte define um contexto ou um Simbólico no qual o artista entra e é moldado. O material escolhido - a pedra, a linguagem, os sons, as cores - também cumpre uma função e trabalha o escultor, o escritor, o músico ou o pintor. Dessa forma, a escritura fornece ao leitor não apenas as fantasias do escritor, mas muito mais as de seus contemporâneos e o Simbólico em que todos estão imersos. Assim, a função da arte não é a de nos fazer entrever o inconsciente do artista. Toda obra de arte que responde ao nosso Imaginário é capaz de trabalhar o Simbólico em que estamos inseridos e modificar nossa relação com o Real. Assim nasce o "inconsciente genético", objeto de estudo de Willemart - que busca revelar o inconsciente no nascimento e nas etapas de construção de uma obra de arte.


A caminho de Guermantes


No Prefácio, Walnice Nogueira Galvão chama a atenção para a importância e a beleza da obra de Proust e sobre a escassez de estudos sobre ela: "Já entre nós, nem somos capazes de precisar há quanto tempo não se escreve um livro inteiro sobre Proust. Estaríamos agora assistindo aos primeiros sinais de uma ressurreição? (...) E, se assim for, de qualquer modo nós os fãs temos que agradecer a Philippe Willemart por nos trazer Proust redivivo" (p. 15).


Analisando, sob a luz das teorias de Freud e Lacan, algumas passagens de O Caminho de Guermantes, Willemart parte da questão: "Qual a mitologia que brota da obra proustiana?" (p. 33).


Como exemplo, no capítulo "A derrota do pensamento ou a doença da avó" (p. 91), Willemart tece uma interessante rede de saberes a partir da seguinte citação de Proust: "Subi e encontrei pior a minha avó. Desde algum tempo, sem saber ao certo o que tinha, andava a queixar-se de seu estado de saúde. Na doença é que descobrimos que não vivemos sozinhos, mas sim encadeados a um ser de um reino diferente, de que nos separam abismos, que não nos conhece e pelo qual é impossível fazer-nos compreender: o nosso corpo. Qualquer assaltante que encontramos numa estrada, talvez consigamos torná-lo sensível ao seu interesse particular, senão à nossa desgraça. Mas pedir compaixão a nosso corpo é discorrer diante de um polvo, para quem as nossas palavras não podem ter mais sentido que o rumor das águas, e com o qual ficaríamos cheios de horror de ser obrigados a viver" (Caminho de Guermantes).


Em sua análise dessa reflexão do narrador proustiano, Willemart problematiza: "Quem é esse 'eu' que fala e se opõe ao corpo ao qual estamos encadeados? Com a idade ajudando de fato, nosso corpo parece não mais nos pertencer no sentido de que não responde mais a nossas vontades e nos obriga a pensar nele com um pouco mais de freqüência. É então que somos confrontados não só com a velhice, mas com a mecânica do corpo que, tal como um polvo, não leva absolutamente em conta o que dizemos. Se a educação física, o treino nos esportes e todas as ginásticas inventadas até este dia nos dão a ilusão de podermos controlar ou até modificar nosso corpo, a doença e a idade logo nos lembram que a ordem interna do corpo pouco nos pertence. Será esta outra derrota do homem depois das de sua expulsão do centro do Universo (Copérnico), do centro da estrutura psíquica (Freud), do centro da economia (Marx) e da linguagem (Lacan)?" (p. 92).

O estudo de Proust a partir de Freud e Lacan


"A psicanálise nasceu no dia em que Freud compreendeu o vínculo entre esse saber não sabido e o sofrimento do analisando ou entre um pensamento não pensado e um agir" (p. 23). Freud esboçou sua primeira descrição do aparelho psíquico e do inconsciente nos anos 1896-1900, reformulando-a depois em 1920, constatando a força da repetição e da pulsão de morte. Lacan, retomou as três categorias de Freud -- o Eu, o Supereu e o Isso - e as ampliou, permitindo assim uma compreensão maior do psiquismo, das artes e da literatura.


A obra de Willemart retoma as três categorias do inconsciente: o Real, o Imaginário e o Simbólico e nos mostra como essas descobertas são visíveis no texto literário. O Real é captado na ficção, na escritura rascunhada, rasurada e recomeçada. É na língua usada que o Real (o impossível de ser dito) se manifesta. O crítico literário, usando a teoria psicanalítica, anuncia o pedaço de Real com que o escritor ou o poeta trabalha. Depois, situando a obra no seu contexto histórico, na corrente das idéias e das mentalidades, na história da retórica e das figuras de estilos, descobre em qual Simbólico a obra se insere.


De acordo com Willemart -- em palestra proferida no Curso de Extensão intitulado "Literatura e Psicanálise", organizado por Cleusa Rios P. Passos, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo, em 9/11/1998 --, o Imaginário é o registro que unifica as partes dispersas, exercendo a pulsão de amor ou de união, dando e organizando sentidos, estabelecendo a coerência da narrativa ou da poesia. Essa instância, portanto, separa, rejeita, se distancia de outras visões do mundo e da tradição literária ou filosófica e valoriza o novo no texto. Por isso, o leitor dos 75 Cadernos de rascunhos de Proust tem muitas vezes uma impressão de trechos sem lógica e de páginas sem conexões e, no entanto, Proust nos deu o melhor romance da literatura francesa do século XX. É o registro do Imaginário que, separando ou reunindo os fólios, trabalhou durante a escritura dos rascunhos para oferecer ao público esse grande romance.


Em Proust, poeta e psicanalista (Cotia, Ateliê Editorial, 2000), Willemart também trata dos processos de criação literária (do Proust poeta) e do conhecimento do homem (do Proust psicanalista). Nesse ensaio, constatamos até que ponto o narrador proustiano, situando-se no campo dos três registros lacanianos, tenta remover o Simbólico para penetrar no Real pelo Imaginário inventado.


Willemart, o psicanalista que escreve


"Gosto de escrever e de ler. Escrever não é um ato premeditado, mas uma ação que movimenta a mente e a obriga a traduzir na língua portuguesa ou francesa o que já está organizado ou que está em fase de organização, sem a participação consciente do escritor. Ler é o meio de alimentar a mente. Se seguirmos o esquema freudiano na Interpretação dos sonhos, o material fica retido no inconsciente, entra no pensamento, ordena-se e, se for chamado, aparece na página, sabendo no entanto que, no embate com a linguagem, o já escrito e o contexto imediato, a idéia sofre transformações às vezes essenciais, para enfim produzir uma palavra, uma linha, um parágrafo que ainda pode sofrer rasuras até a elaboração de artigos e de livros", afirmou Willemart numa aula de pós-graduação na Universidade de São Paulo, em que tive o prazer e a honra de ser aluna ouvinte no último semestre de 2002.


Belga, naturalizado brasileiro, Willemart, de formação psicanalítica, também dirige o Laboratório do Manuscrito Literário, ligado ao Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética (NAPCG), em que são estudados autores como Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Milton Hatoum, Ignácio de Loyola Brandão, Flaubert, Balzac, entre outros.


Sua obra, sempre dedicada a desvendar o não sabido em literatura e em psicanálise, compõe-se de inúmeros livros e artigos publicados no Brasil e na França.


Psicanalista e editora assistente de literatura infanto-juvenil"

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Livro da Dança. Inês Bogéa


O que dizer de um bom livro? Sim. Didático e muito divertido também. Acho sempre interessante revelar como os livros nos chegam às mãos. Há quase sempre algo curioso. Além disso, às vezes, parece envolto em mistério, mas que, independentemente da constatação, eles sempre nos enchem de alegria. Meu professor de música (eu estudo clarineta) leciona educação artística e estava com o livro para explicar o significado de “ribalta” (eu tocava a música “Luzes da Ribalta” de Charles Chaplin): “luzes que iluminam o palco de um teatro” (ele dissera). Folheado o livro, as fotografias chamaram-me à atenção e, pronto, fiquei curioso. Quer ler? Leva. Enfim, com o livro emprestado, li com prazer. Enriquecedor, numa leitura digestiva, fluídica, bem do tipo “não consegui largar, enquanto não terminei”. Em forma de autobiografia, a autora, uma bailarina profissional, nos leva a uma divertida viagem no tempo para conhecer sua trajetória de vida e um pouco da história da Dança. Desde a sua tenra idade, ainda na ginástica olímpica escolar, com sua vontade de voar, fazendo estrelas, começa contando que “sua história de bailarina começa de ponta-cabeça”. Depois, entre cambalhotas e truques, mas sempre sob rígida disciplina, participou de várias competições. Experimentou a capoeira até conhecer o Balé Clássico e o Moderno. Formou-se bailarina e professora pela Royal Academy of Dance. Seguindo a linha paradidática, este Livro da Dança nos dá um apanhado geral da Arte da Dança, o popular e o erudito, a dança clássica, formal, rígida e a dança moderna, com mais liberdade. Traz um pouco das grandes estrelas da dança mundial, bailarinas e bailarinos, coreógrafos, peças e um pouco de tudo que possa enriquecer o leitor com a cultura da Arte da Dança. Professora e  hoje crítica de dança, Inês Bogéa fez de “O Livro da Dança” um dos volumes mais interessantes da coleção profissões, senão o melhor e, claro, despertando a curiosidade para conhecermos “O Livro da Música”, “O Livro do Guitarrista” e outros. Faço aqui apenas uma ressalva, criticando o uso de páginas coloridas que, em algumas páginas, tornou difícil a leitura, fruto do contraste das páginas com a cor das letras. De resto, um livro recomendável.  Vão, a seguir, algumas passagens do livro:
“O BRASIL QUE DANÇA
Como eu contei antes, de um jeito ou de outro todo mundo dança e sempre dançou. Os índios do Brasil, por exemplo, há séculos têm seus rituais dançados, e os escravos africanos, que começaram a vir para cá no século XVI, dançavam ao som dos atabaques. Alguma coisa das danças deles se preserva até hoje no Carnaval, misturada com outras danças populares — e também com as que cada um inventa na hora. Todo mundo dança e sempre dançou, e não é preciso um coreógrafo para isso. Mas neste livro estou contando histórias de dança cênica — uma forma de arte, não um ritual, nem só um divertimento. Vamos ver agora, quando essa arte chegou ao nosso país.
O balé veio para o Brasil com a corte de D. João VI, no início do século XIX. Alguns dos grandes espetáculos que então se dançavam na Europa foram vistos por aqui. Bem mais tarde, já em 1909, os Balés Russos de Diaghilev passaram pelo Rio de Janeiro, apresentando-se no recém-fundado Theatro Municipal. Nijinski causou grande sensação. Nos anos seguintes, o Municipal continuou a receber convidados, entre eles uma bailarina russa maravilhosa, Maria Olenewa, e a companhia de Anna Pavlova.
Olenewa resolveu morar no Brasil e, passados alguns anos, em 1927, foi convidada a criar a primeira escola de dança numa das salas do Theatro Municipal do Rio. Nove anos depois, nascia o Corpo de Baile do Theatro Municipal, chefiado por ela. Outras estrelas internacionais farão parte da dança brasileira, como Tatiana Leskova, Nina Verchinína e Eugênia Fedorova, que vieram para cá nas décadas de 30, 40 e 50.”
“Andei por vários caminhos, que começaram de ponta-cabeça e seguiram na ponta dos pés. Do sonho das pontas ficou a lembrança de um mundo todo branco e surreal. Da ginástica, da capoeira e das aulas de balé, o meu jeito de dançar. Tudo contou, depois: dança clássica, dança moderna, dança contemporânea, dança brasileira. De todas as maneiras eu dancei, e fui aprendendo que ser bailarina é muito divertido — e muito duro.
A carreira é curta, como a de jogador de futebol. Não existe idade certa para parar, mas chega uma hora em que se tem de escolher outro caminho. Pode ser professora de balé, ensaiadora, coreógrafa, cenógrafa, crítica de dança, ou seguir qualquer outra profissão ligada à dança; ou então começar algo novo.
De minha parte, as coisas aconteceram meio por acaso. Escrevi sobre um balé que tinha visto. Um amigo jornalista leu o texto e o levou para o seu editor. Pronto: foi a primeira matéria minha publicada no jornal. Não parei nunca mais.
Hoje ando por este caminho da escrita, não mais do corpo no ar, mas da mão no papel. Com o mesmo fascínio que a dança, a escrita me pegou. Como nos outros tempos, em que eu ficava praticando o dia todo, nas árvores, na rua e em qualquer lugar, agora invento e ensaio na cabeça.
Mesmo a escrita é parte da dança. Se estou assistindo a um espetáculo e vou escrever para o jornal, começo dançando junto, na cadeira. Depois danço com as palavras, até elas formarem a coreografia. Às vezes, quando está difícil, faço o movimento de novo, e logo vem uma idéia. Para escrever, assim como para dançar, a gente precisa ter ritmo. Precisa ter forma. Acima de tudo, precisa escutar o mesmo silêncio de dentro, que é onde tudo começa.”
Leia também: "O Livro da Música"; "O Livro do Guitarrista"; e outros pertencentes à mesma coleção profissões da Companhia das Letrinhas.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Um Terno de Pássaros ao Sul. Fabrício Carpinejar


"UMA CARTA AO PAMPA.

Um Terno de Pássaros ao Sul de Fabrício Carpinejar é uma nova “Carta ao Pai” escrita em versos.

Terminei de ler Um Terno de Pássaros ao Sul (96 pág, R$15), lançamento da Editora Escrituras.

Bueno, a poesia do escritor gaúcho Fabrício Carpinejar é uma prova de que Simônides, o lírico e pensador grego, tinha razão ao anunciar que a poesia (a boa pelo menos) é uma pintura falante, ao passo em que a pintura (também a boa) é uma poesia muda. O que dizer? Subjetivamente, que gostei de verdade.

Objetivamente, e buscando a razão do gosto, que o "arremesso do balde ao poço" da lembrança e do passado é dos mais convincentes. As imagens vigorosas (assim como "A coxilha é o céu trocando de traje") e incontáveis que Carpinejar metafora (do verbo metaforar), em sucessões por vezes alucinantes (e surrealisticamente cheias de poesia como "Os caminhos tropeçam no cadarço das estrelas" ou "Os peixes parados nas algemas das algas"), deram muito de estofo ao meu julgamento positivo. Eu avançava nos versos, cada vez mais certo de que o autor cumprira a missão. E isso não é, de longe, pouco.

Os jogos de palavras cheios de significado e colocados em oposição como o "amor-tecidos" do início e o "amor-talhados" do final (ou os versos “Confundia-se a força da estrada/ com o estrado da forca.”) não deixaram por menos. Ora, isso não são meras brincadeiras de ajuntador de palavras. São achados poéticos de valor, que só caem e adquirem forma sob o machado de um poeta mergulhado na lembrança que tem, ademais, o domínio no manejo da lâmina e seu peso. Já bastaria, de longe...

Mas tem mais. Vale ouro o tom confessional desta nova "Carta ao pai" (Franz Kafka) escrita em versos, deste acerto de contas, pedido de desculpas e disposição à luta. Sim, porque toda a história de Fabrício Carpinejar e a de seu pai, Carlos Nejar, jorra voluptuosa na feição do verso, em imagens que desenham a infância do autor, os encontros e desencontros com o pai, a vida em família, a despedida e a separação, que se ameaça eterna de repente no veredicto de um médico enganado. Tudo pleno de amor, pintalgado de dor, lavrado em poesia.

As injustiças das quais Nejar, o pai, foi vítima, são pintadas em verso. Tanto a injustiça do filho – segundo é contado e eu não conhecia: “Nasci vingativo,/ negando/ o que deveria perdoar,/ omitindo/ o que deveria mencionar,/ exagerando para soar falso/ o que de verdade sinto.” – quanto a do mundo, que eu conheço muito bem, vive no silêncio tácito que de repente se estabeleceu a respeito de Nejar na província sulina e se reflete nos versos "Quem te conhece pela fama/ não te conhece ainda" são versejadas com pujança. A injustiça do filho se redime numa confissão solene: “ao escapar de tua figura/ me tornei igual.” e se esfuma de vez numa constatação factual: “O destino nos assemelha/ mais do que o nascimento.” A da província amenou, mas continua. Seguindo os melhores manuais não escritos de poesia, o poema de Carpinejar mostra a História toda, correndo vigorosa, borbulhante e semi-oculta no subsolo da Lírica. E isso não é pra qualquer silvestrim...

Sim, Um Terno de Pássaros ao Sul (o terno – também semivelado – é formado pelo pai, pelo filho e pela mãe citada de soslaio, todos poetas) é uma carta ao pai em versos; mas é também uma carta ao pampa, que aparece vetusto em retratos de farinha e carne seca. E que dizer do pedido pela volta, que vira clamor no andar do poema e termina com a síntese justa e invertida da frase, que ademais é poética até o fim do mundo? Depois de tanto "Volta ao pampa, pai" o arremesso sábio, a divisão da culpa na sentença "Volta ao pai, pampa." é é final de verdade, clímax, ápice e píncaro, fecho de ouro.

Porque na realidade não foi apenas o pai que deixou o pampa, mas também o pampa que deixou o pai. (Aliás, não sei o que acontece, mas Nejar não é a única vítima do estranho processo. De cara e assim no mais, cito o Fausto Wolff e o Sinval Medina, por exemplo, escritores que sofrem do mesmo destino e, tirante o Sérgio Faraco – que é o cerne do pampa e o pampa de verdade, não aquele que expulsou o pai do poeta –, encontram par em poucos entre os estabelecidos no Rio Grande do Sul. Um dia eu escrevi isso, defendi a tese, mas uma revista achou que eu mexia muito "com suscetibilidades", que era muito subjetivo... Mas tá na gaveta!).

De final, e isso assinala um poeta de vulto, o fato de que Carpinejar não se amasia ao modismo daquela poesia que Bruno Tolentino – que sempre é taxativo e às vezes justo – chamou de poesia cocô de cabrito. A haicaísmos pseudos, ele responde com arcaísmos – no melhor dos sentidos – narrativos de calibre. Em tempos frios, rápidos e virtuais como os de hoje, Carpinejar é capaz de fazer poesia épica, quente, demorada e real.

Um dia descobrirei o que Nejar disse a respeito. Mal imagino a comoção de um pai que merece do filho um poema desse tamanho, quanti e qualitativo.”


quarta-feira, 16 de junho de 2010

A história de Lula, o filho do Brasil. Denise Paraná


Calma, calma, já sei, já... sei. Muito provavelmente, alguém que me leia até poderá dizer: “... mas o Lula é estereotipado, caricatural.”  Entretanto, ao ouvir isso, me pergunto: até que ponto está sendo sensato ou preconceituoso, e até que ponto nossas próprias ações e as do homem público chamado Lula afetam a sociedade positivamente? Não precisa refletir muito. Certamente, será perda de tempo, dependendo do lado em que se está. Não adianta, Lula se enquadra perfeitamente na categoria: “ame-o ou deixe-o”.  E existem zilhões de diogosmainardis espalhados por todos os rincões deste imenso país sem preconceito e britanicamente educado.

Mas não fique frustrado, nem tampouco se constranja em dizer de que lado você está. Seja qual for ele, você não está sozinho. Existem, no mínimo, mais de 36 milhões de pessoas que odeiam o Lula, pelas razões mais variadas e até esdrúxulas, as quais faço questão de mencionar, pois já as ouvi por aí: “não gosto do Lula porque é comunista; é barbudo; é feio; é baixinho; falta um dedo na sua mão; fala com a língua presa e tem uma voz estranha; é nordestino; torce pro Corinthians; é do PT” (sic) e muitos outros pejorativos que não me vêm agora. Posturas carregadas de puro preconceito e desinformação (para não dizer analfabetismo político, pois, com certeza, muitos se ofenderiam).

Por outro lado, para aqueles que simpatizam com a figura do Lula, hoje personalidade mundialmente famosa (para ojeriza de muitos), há mais de 70 milhões de pessoas que o adoram. Então? “That’s it. Take it easy, man! Althought neither everything can be funny”.

Sem preconceito de raça, credo, cor, partido político, mas... também não! O livro não é. Como quiseram parecer que fosse, o PSDB (ex-ala direita do PMDB) e o DEM (ex-PFL, ex-ARENA) e simpatizantes, o livro de Denise Paraná não é instrumento de campanha eleitoral, mesmo porque o presidente Lula não pode mais ser candidato. Na verdade o livro traz no próprio título parte da sua proposta: “o filho do Brasil”. É um retrato de muitos luízes, nordestinos ou não, que passaram por privações e as piores adversidades e sobreviveram. Não há como negar que existem milhões de pessoas que viveram e ainda vivem experiências muito semelhantes às de Luiz Inácio. O Brasil é um país continental e, como tal, cheio de contrastes até hoje. Quem vive a rotina dos Estados do sul (entenda São Paulo para baixo), não faz idéia do se passa no sertão nordestino:

Sobre o país onde moravam, Lindu e seus filhos sabiam muito pouco, quase nada. O nome do presidente talvez alguém tivesse dito. Não conheciam o mapa brasileiro. Outros países pareciam menos concretos que história de lobisomem. O mundo dos Silva se resumia a sua família, parentes e vizinhos. O lugar mais longe que haviam visitado era Garanhuns, a uma distância de três horas de caminhada. Nunca haviam visto mar, rios, lagos. Conheciam apenas os alimentos do agreste. Não conheciam outras raças humanas.

Para alguns retirantes, São Paulo era a terra prometida do Antigo Testamento, onde todos seriam felizes. Para outros, uma mistura de encantamento e terror. A São Paulo que era para ser luz, a luz no fim do túnel, às vezes se revelava escuridão. Sabiam que a cidade grande tinha engolido homens que nunca mais cuspiu.

Sem notar, Lindu estava repetindo a história de seus parentes europeus. De mãos vazias, deixava para trás sua vida, os amores que nunca mais veria, como sua Mãe Tili, que morreu quatro anos depois.” (p.46)

Há quem entenda que o livro é mais um retrato da bravura de mulher de fibra que foi a mãe de Lula, Dona Lindu. Que lutando contra as piores adversidades, conseguiu criar os filhos e lhes dar uma vida mais digna. O filme é uma reprodução bastante fiel ao livro, mas ler o livro é sempre uma boa opção, antes ou depois do filme.

“Criada numa das regiões mais pobres do país, D. Lindu tinha tudo para ser mais uma nordestina derrotada pela miséria, morrendo ou levando uma vida desumana. Contrariando todas as probabilidades, ela não sucumbiu. Apesar da seca, da fome, do marido violento e alcoólatra, da falta de oportunidades, enfim, de um sem-número de “apesares”, D. Lindu se manteve de pé. Mais do que isso, se converteu em um exemplo de coragem e dignidade para os oito filhos.

Um deles, como a mãe, também recusou o futuro duro e inóspito que o destino lhe reservava. Um menino tímido, que morria de vergonha de falar em público e vivia agarrado na barra da saia de D. Lindu, se tornou, primeiro, o mais vigoroso líder sindical do Brasil, e, depois, um dos homens mais influentes do planeta. 

A História de Lula, o Filho do Brasil é o relato verídico e comovente da origem do torneiro mecânico que se elegeu presidente da república, e de como seu amor pela mãe o ajudou a transformar o impossível em realidade.” (contra-capa do livro)

Então, para aqueles que ainda tem interesse em conhecer um pouco mais da origem do homem público chamado Lula, o livro é uma boa dica de leitura. E agora um pouco sobre a autora:

“DENISE PARANÁ nasceu na cidade de São Paulo. É jornalista, roteirista, escritora, doutora em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo e pós-doutora pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra.

Ela é corroteirista do longa-metragem ‘Lula, o Filho do Brasil’. Entre seus livros está a biografia autorizada homônima ao filme, publicada em vários países. Segundo o New York Times, “muito do que se conhece do início da vida de Lula vem do trabalho de história oral feito nos anos 90 por Denise Paraná”. (orelha final do livro)

E, para quem prefere biografias interessantes de “outras” personalidades, vai aí: “O Mago”, biografia de Paulo Coelho, de Fernando Morais; ou “Frente e Verso”, autobiografia da empresária Lucília Diniz; ou até “Caminhos e Escolhas” de Abílio Diniz (dono do Grupo Pão de Açúcar). Seja qual for a sua preferência, nunca deixe de ler... pois “Livros” são ótimas companhias: “Dize-me com quem andas, que te direi quem és!”

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Inverdades. André Sant’Anna

Numa mistura esdrúxula de rebeldia, soberba, muito mais que arrogância, sarcasmo, com doses intencionais e exageradas de insanidade, André Sant’Anna (filho do grande escritor Sérgio Sant’Anna) se socorre de personalidades mundialmente famosas (embora o autor queira dar a entender que algumas não o sejam, ou que não mereçam a fama), para dar mais cor à realidade, em situações hilárias, grotescas e que  chegam a beirar o preconceito. O escritor domina, como poucos, o idioma (não me deparei com “erros” de português), embora não  tenha concordado  com alguns tangencionamentos que certos contos tomaram. Mas... quem sou eu?

Haverá, claro, quem saiba distinguir a realidade da ficção, mas, muito provavelmente, apesar da advertência nas páginas iniciais, algumas pessoas acreditarão piamente na fantasia delirante dos contos do autor. Pois, para quem ainda não sabe, utilizar dados estatísticos (observe as pesquisas eleitorais) e ou personagens reais (não fictícios) dão mais credibilidade ao maior dos absurdos. E, como o próprio título do livro, os contos de “Inverdades” são mesmo fictícios, embora os personagens possam existir ou ter existido, o autor, temendo (o que não o isenta de absolutamente nada) um processo por danos morais, faz questão de dizer: “qualquer semelhança com fatos reais, neste livro, é mera coincidência. As pessoas citadas não existem e nunca existiram. Eu também não existo.” Mais claro, impossível.

Apesar de tudo, há, em “Inverdades”, momentos geniais como uma Marilyn Monroe, aos 75 anos, atriz, escritora e milionária, em “A mulher mais doidona e inteligente do planeta”; uma viagem aos últimos momentos do grande Jimmy Hendrix, em “Você já experimentou”, no qual o leitor torce por um final feliz; ou um encontro mágico entre Duke Ellington e Miles Davis, em “Bitches Brew”. Em outros, dessa vez mais genioso, André trata de momentos, no mínimo, esquecíveis dos Beatles (se acaso tenham acontecido), fumando (aquilo mesmo) num banheiro do palácio da Rainha da Inglaterra; ou de um provável instante em que Roberto e Erasmo Carlos deixam de ser pessoas normais e despertam, passando a compor “canções de amor”. Tornando uma obviedade a preferência musical, no mínimo requintada, do autor, ao trazer para o livro Charlie Parker, Duke Ellington e Miles Davis.

E, como toda pessoa que gosta de carregar no humor, até sem perceber acaba por exagerar e descambar para o preconceito, supostamente inconsciente ou, por que não?, por desinformação condenável e injustificada, mesmo que admita ser uma “inverdade”. E André, muito provavelmente, movido pela empolgação, dando indícios claros da sua origem social e sua limitada visão política, se deixar levar por crises de “diogomainardismo”, dedicando dois contos ao Lula (aquele que “o Mundo” todo já conhece). E, como ele mesmo diz: “é mera coincidência... eu também não existo”.

Para a sorte do André Sant’Anna, tudo indica que o Roberto Carlos ainda não leu o livro, pois há risco de se sentir ofendido e ajuizar uma Ação para a retirada de circulação dos livros, como o cantor já fez em outra oportunidade. Acredito até que, dependendo do sucesso deste seu “Inverdades”, não seria surpresa o André Sant’Anna lançar o livro “Inverdades 2 – A missão”, quem sabe com umas 400 e poucas páginas, com contos envolvendo “Dilma Roussef”, “Marina Silva”, homossexuais, negros,  a masculinidade dos gaúchos e, claro, nordestinos. Temas muito comuns em piadas. Fica a sugestão (se não perceberem, estou sendo irônico). Quem sabe para 2017 ou 2018? Mas, como a sociedade brasileira se formou miscigenada (para ódio de muitos) e ela é o que é mais por condescendência e tolerância que por convicção, muitos ainda ocultam seu veio preconceituoso (para não dizer racista) através da irreverência (mais aceita e “bem humorada”). Mas ainda tem um porém, como dizia Nelson Rodrigues: “toda a unanimidade é burra”. Leiam e tirem suas próprias conclusões!

Sobre o livro, ainda:

André Sant’Anna, desse modo, nos oferece um livro curto e ágil, repleto de humor e o cinismo típico da literatura contemporânea. Talvez levando a exploração desse cinismo além, talvez o empacando numa abordagem individualista. Ele pode estar sendo irreverente, mas buscando pôr em termos claros e simples o complexo e difícil, sem desprezar nenhum desses lados, planificando-os para que sejam adensados pelo leitor. Ou tal planificação pode ser lida como uma mera banalização, representando o elo mais pueril que se tem com a realidade e seu significado, desprovendo assim a leitura de um nível mais profundo, supostamente almejado pelo escritor e supostamente almejado por nós em relação à realidade. Aí residiria sua moral, não apenas cínica, mas também complacente. Porém, isso quem decidirá será o leitor, ao final do livro, quando chegar a seu “Fim”.

Mais ainda sobre o mesmo livro:

“Incorporando os chavões, a própria literatura se amesquinha, o que se vê também no modo algo desdenhoso e reiterativo com que o narrador manipula a linguagem — um pouco como uma criança entediada com seus soldadinhos. Uma literatura que não se oferece como espaço de redenção e enriquecimento do leitor, pois é feita dos detritos de uma cultura arruinada.” Fonte: O Globo.


“Saiu o Inverdades, do André Sant’Anna, o gênio da burrice. Mestre em pegar assuntos complexos e ir reduzindo à migalha, André tricota personagens até se transformarem em estereótipos, estereótipos se tornarem signos, signos virarem meros ritmos. Binária, sua literatura quebra comportamentos requintados com equações de primeiro grau, provando que, apesar de toda nossa empáfia, ainda somos uns símios.”

Editora 7 Letras, 2009, 66 páginas.