sábado, 27 de março de 2010

E-pifanias - Pequenas histórias para acordar. Carlos Seabra


Temos que admitir: ler textos longos na tela de um computador é um saco. Cansa, os olhos ardem, sem falar que o computador é algo dinâmico e, realmente, não foi feito para exibir páginas de livro. Imagina, então, ler um romance. Não dá. Por isso que ainda não vingou a venda  de "e-books" ou dos "livros-eletrônicos". Ninguém em sã consciência irá ler, por exemplo, um romance na telinha ou, pior ainda, imprimir o livro inteiro na sua impressora. Haja papel e, claro, tinta! Mas e os tais de “E-readers”? “Kindle”, “Sony Reader”, “iPad”, eles estão  por aí. Bem, mas aí é outra história. Estamos prestes a testemunhar um evento histórico. O livro eletrônico ou, mais precisamente falando, o  "e-reader" ou o "leitor-eletrônico". Não literalmente um livro como já conhecemos, mas um aparelhozinho que irá reproduzir os já famosos “E-books”, sem termos de alugar o monitor do PC. Além de reproduzir, pode armazenar não apenas alguns, mas milhares de e-books. Finalmente poderemos carregar uma verdadeira biblioteca debaixo do braço.

Os "e-books" já vêm se popularizando há muito, mas o que ainda não vingou também foi o público, os seus leitores. Eu, por exemplo, admito, sou conservador e gosto de ler  livros tradicionais, sentado numa poltrona confortável, sem cansar os olhos. Entretanto, até agora o único lugar para se ler um e-book é a tela do seu computador pessoal. Não dá. Exceto se o tal do "e-book" tiver textos curtos e, claro, com uma interface amigável ou, pelo menos,  que faça o leitor ter a impressão de que está lendo realmente um livro físico tradicional. É o caso do livro que acabei de ler, em poucos minutos: “E-pifanias”, de Carlos Seabra, neste endereço:

“E-pifanias - Pequenas histórias para acordar”, de Carlos Seabra é um e-book “muito bem estudado” e se enquadra num modelo, como posso dizer?, padrão, cujas características o permitem ser lido “on line”. “Sem estresse”, são textos curtos, classificados popularmente hoje, como de “micronarrativas” (vide “Minicontando”, de Ana Melo). As micronarrativas de Carlos Seabra, em “E-pifanias”, não tem títulos e, ao lê-las, o leitor não sente falta deles. Embora seja forte a presença do humor nas suas micronarrativas, elas fogem completamente da anedota ou piada, estas consideradas sub-literárias. “Além do que”, ninguém se enriquece culturalmente, ou pode ser considerado “culto”, por saber de cor 200 piadas “negro-racistas” ou que abordem a desproposital e absurda polêmica sobre a masculidade dos gaúchos. As micronarrativas, minicontos, ou microcontos são, a meu ver, literatura contemporânea, muito atual e necessária para uma época em que o tempo nunca foi tão veloz. Como muito bem comentam Luís Ene e Paulo Rodrigues Ferreira, no duplo prefácio (os textos mais longos do e-book: duas páginas), Carlos Seabra escreve bem, muito bem, com maestria, domínio e segurança no seu poder de concisão. Hoje em dia, dizer muito em poucas palavras não é só uma arte, é uma necessidade, pois os relógios atuais nunca foram tão impiedosos:

“Era um assassino serial. Matou a aula e foi ao cinema. Traçou um lanche e matou a fome. Depois, sem mais nada para fazer, ficou matando o tempo.”;

“Lolita era tão terrível na arte da sedução que seu ursinho de pelúcia vivia morto de tesão.”;

“A mulher-gorila fugiu com os irmãos siameses. Denunciados pelo dono do circo, eles foram presos por bestialismo e ela por bigamia.”

Como se pode ver, as micronarrativas de Carlos Seabra, em seu “E-pifanias”, são divertidas e muito bem humoradas, com aquele toque sutil que só um bom escritor sabe dar, às vezes irônico, em outras debochado, ou genial, como esta, a que mais gostei, quase uma “parábola” sobre união:

“Os semícaros eram um povo unialado, cada qual com uma única asa. Para voar, tinham que escolher alguém e se abraçar.”

Sobre o autor:
“Carlos Seabra trabalha com criação de jogos e com uso das novas tecnologias nas áreas de educação, cultura e sociedade. Escreve microcontos e também haicais (um sujeito preguiçoso, vê-se logo!). Mora em São Paulo, Brasil, há mais de trinta anos. Nasceu, há mais de cinqüenta anos, em Lisboa, Portugal.”


Sobre E-books de leitura gratuita, acesse:



segunda-feira, 22 de março de 2010

Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros. Elrodris


“Por isso, batam palmas, estranhos, batam palmas, aqui está a estória de mais um criador de monstros, um padrasto como outro qualquer, o Senhor Volátil em pessoa.” (p.85, em “As estátuas planas de Paul Sem Nomes). Sim, Elrodris nesta passagem, inconscientemente (ou não), já faz sua auto-definição: “um criador de monstros”. Elrodris, mais tarde assumiria, então muito corajosamente, seu próprio nome: Paulo Scott. Este especialista em criar monstros cria também atmosferas tétricas, sombrias, para que seus monstros possam viver em paz, mas com seus sofrimentos apenas atenuados. Apesar de longo, o título ajuda o leitor desavisado a entender, um pouquinho que seja, esta obra que para mim é emblemática. Para um primeiro livro, Elrodris (ou Paulo Scott) já antecipava parte da sua contundente proposta social: “domesticar as paixões” (dos anjos também); “atenuar os sofrimentos” (dos monstros também); e, claro, “alucinar e embasbacar” os leitores.

Histórias Curtas é de 2001 e, para o ano que iniciou um novo milênio, por que não publicar um livro impactante, com temática inédita, estilística e estruturalmente controvertido, nem prosa nem poesia, ou um misto de tudo e um pouco mais? Os teóricos literários (urgh!) que quebrem cabeça para “viajar na maionese” e enquadrarem um livro como este em algum estilo preestabelecido nos seus velhos manuais pedagógicos (puff!). Mas os livros são feitos para serem lidos, para a grande (ou nem tanto) massa de leitores, não para críticos literários ou para servirem de pesadelo aos vestibulandos. Este livro de “Histórias Curtas” já começa inovando pela apresentação dos textos, associados com arte. São produções de vários artistas, produzidas em litografia, computação gráfica, nanquim (p.87), que, se não enriquecem mais os textos, os tornam mais agressivos. Uma das propostas de Elrodris, nestas suas histórias curtas, talvez (particularmente falando) tenha sido a de mostrar ao público leitor uma (ou algumas) das possibilidades de escrita que a grande literatura se permite. Exemplo de que o escritor, o bom escritor, pode não só inovar em temática, mas em estilo, em estrutura, em apresentação ou o que mais ele bem quiser. Afinal, como todo o escritor, Elrodris “brinca” de Deus e até O ironiza com estilo: “...Deus deixa os sábios se anotarem, uns nas costas dos outros, pois temem o erro de uma vida em vão. / Deus é esperto, é gerente, aprende com os medos desses seus brinquedos.” (p.21, in “O jogo dos ignorantes”).

Eis, então, um pouquinho de “Histórias Curtas”:

“Vou procurar teus dedos cortados na minha caixa de curativos, estavam junto do veludo vermelho que forrava teu vestido. Eu sei que quando encontrá-los continuarei sem você.

Ando com os bolsos vazios, com medo de ser uma daquelas pessoas que te esqueceram, com medo de abandonar meu laboratório portátil e a programação das vinte e uma.

Ando com pessoas que mentem e prometem na vida se perder. Há, em todos, uma frieza adolescente, um desalento calculado do qual estou cansado.

Porém, no fim, quando de tudo isso desacomunado, talvez, possa esperar sozinho o amor que foi desprezado, sem mais dos teus dedos me perder.” (p.14, in “Lambendo a saudade em selos de estricnina”);

“Do outro lado da porta, uma brincadeirinha devassa caçoa de mim, enquanto promete que vai me amansar. Ai que medo! É o Seu Escuridão que me espera nas frestas e cantos para me beijar.

- Seu Escuridão, seu escuridão, no teu ventre, juro, vou desmaiar. Você me quer? Você me segura?

Não há respostas. Apenas um silêncio ardiloso que, eu sei, anda em voltas, medindo-me, quase me ganhando no seu emaranhar. Tentando romper as trancas, atado à impaciência do vento noturno como um parasita que se disfarça sem horários. Seu Escuridão cavalga sem rosto nos meus calafrios. Seu Escuridão espera, já sabe que me devora, e eu gosto. Ai que medo!” (p.33, in “Ai que medo!”).

Enfim, admito: sou fã incondicional de Paulo Scott. Sua bibliografia não é extensa, mas bem que poderia, para o nosso deleite. Este “Histórias Curtas” é de 2001, depois foi “Ainda Orangotangos” (2003 – contos); “Voláteis” (2005 – romance); em seguida “A timidez do monstro” e “Senhor Escuridão” (poesia -?), ambos de 2006. E tenham uma boa viagem durante a leitura, Senhores!

sábado, 13 de março de 2010

Cultura Geral – Tudo o que se deve saber. Dietrich Schwanitz.


Há quem se dedique a estudar e conhecer profundamente, por gosto ou sina - não sei, um só assunto, um só tema, cada vez mais e mais, emburrecendo para todo o resto. A este grupo pertencem os cientistas, os gênios, os prêmio-nobéis. Por outro lado, não tão ao contrário, há quem goste de conhecer um pouco de tudo, às vezes até são capazes de portarem-se como os do grupo anterior em algum assunto, mas é como se tivessem a mentalidade de almanaque, até pejorativamente falando. Este grupo é formado pelas pessoas conhecidas como “cultas”, “instruídas”, que muitas vezes são confundidas com aqueles extintos “sábios” dos livros de história. Mas os “sábios” são quase mitológicos e confesso que nunca conheci um pessoalmente. Mas todos hão de concordar que as pessoas do segundo grupo são muito mais empáticas e divertidas para se “bater um papo” que as do primeiro grupo. E o que dizer do alemão Dietrich Schwanitz?


“Dietrich Schwanitz nasceu em 1940. Estudou Filologia inglesa, História e Filosofia nas universidades de Münster, Londres, Filadélfia e Friburgo. De 1978 a 1997 foi professor de Cultura e Literatura inglesa na universidade de Hamburgo. De 1997 a 2004, data de sua morte, viveu de seu trabalho como escritor. Além deste livro, publicou “Der Campus” (O Campus) e “Der Zirkel” (O Círculo).” Eis a descrição do autor que consta na orelha inicial do livro (516 páginas). E então? Bem. Com um currículo como este, ninguém irá duvidar da capacidade de Dietrich Schwanitz de falar sobre “cultura”, mais precisamente “cultura geral”. Para quem gosta de Literatura, Arte, Música, História, Política, Filosofia, de apenas um, de alguns ou de tudo junto, eis “O Livro” que faltava. Com “Cultura Geral – Tudo o que se deve saber” é possível ao leitor apaixonado por conhecimentos gerais e cultura, finalmente, organizar o que já sabe, aprofundar-se ainda mais em alguns assuntos e enriquecer seu “banco de dados”. Não se trata de esnobismo, querer aparecer, ser mais do que somos, mas este livro é uma ferramenta para tirar muitas dúvidas que persistiam e que achávamos que morreríamos com elas, conhecer o porquê das coisas, pessoas, dos países serem como e o que são. Em linguagem acessível e clara, sem erudição, o autor quer ser compreendido para que seu trabalho tenha resultado. O livro tem 516 páginas, mas está muito bem organizado e dividido pedagogicamente, facilitando ao leitor seguir com a leitura ou retornar para algum assunto que queira rever.


“Cultura Geral – Tudo o que se deve saber” é um livro para todos, mas principalmente para os amantes do “saber” e, claro, para quem lida com o ensino e o conhecimento, os professores.


O próprio autor é quem diz no prefácio endereçado “Ao Leitor”: “Tenho a sensação de que o momento é propício para um livro como este. E acho que os leitores têm direito a ele. Sou solidário com aqueles que buscam conhecimentos e são alimentados com fórmulas prontas: antigamente eu também me sentia assim. Por isso, escrevi o livro que teria sido necessário para mim naquela época – o livro com toda a bagagem que chamamos de cultura.”


Como aperitivo ou... amostra grátis, da introdução do livro, p.XX:


Inteligência, talento e Criatividade

Nesse capítulo, abordamos sucintamente a discussão atual sobre temas que possuem um papel decisivo para o sentimento de auto-estima de muitas pessoas: inteligência, talento e criatividade. Falamos sobre as diferenças entre criatividade e inteligência, mostramos como funciona nosso cérebro e a existência de cinco tipos diferentes de inteligência.


O que não convém saber

Esse assunto trata daquelas províncias do saber que pertencem ao território da trivialidade e que de preferência deveríamos deixar ocultas, como a visão geral e enciclopédica sobre a vida privada de atores, nobres e pessoas importantes, além de trazer informações sobre as regras referentes às técnicas de comunicação para lidar com conhecimentos marginais, sem interesse cultural, triviais ou absolutamente duvidosos.


O saber reflexivo

Nesse capítulo, mostramos que a formação cultural permite a auto-avaliação. Nesse sentido, fazemos um balanço e sintetizamos o teor do presente livro na seguinte pergunta: o que faz parte da cultura geral?”


“Cultura Geral – Tudo o que se deve saber”, de Dietrich Schwanitz, 2007, editora Martins Fontes, R$82,30, mas parcela-se em até 3 vezes. Acredite! É um bom investimento. Depois, depois conversaremos! Eis um livro que irá marcar sua vida! Leitor antes e “O Leitor” depois da leitura.

terça-feira, 9 de março de 2010

Os saltitantes seres da Lua. Nelson de Oliveira


“...Papai, papai, eles estão chegando, os caipiras, papai, eles estão chegando, corre, corre, papai, corre, eles estão chegando, os caipiras./ Pulavam, ao meu redor, as crianças. Comecei a rir, diante daquela cena. Pulavam em câmera lenta, como se estivessem no vácuo, na superfície da lua. Enquanto uma subia, outra descia, alternadamente, os estranhos seres da lua. Duas criaturas gordas, flutuantes, numa cratera qualquer, saldando-me alegremente.”(p. 73/74).


“Aparentemente absorvido por um zumbido composto de mil clarins, o anjo, atordoado por este acorde dissonante, sem fronteiras, ecoando entre o céu e a terra, perceptível apenas pra ouvidos refinados, divinamente abrangentes e refinados, reconhece em si parte daquela questão irrespondida, talvez “The Unanswered Question”, formulada no início dos tempos e representada por flautas, oboé e clarineta, entre outros, há alguns anos, por um compositor americano, Ives.” (p.9).


“...Ele existia, era sólido e palpável, porém, seus olhos apresentavam uma coloração terrivelmente alucinada e transparente, como se neles, mergulhado em suas pupilas quase pré-históricas, estivesse presente, muito bem aprisionado, um reflexo claro e detalhado do dilúvio universal – a catástrofe da vida, borbulhando a mais de 100° C.” (p.36/37)


Essas três passagens são apenas um aperitivo, amostra grátis do estilo de narrativa dos cinco contos que fazem parte de “Os saltitantes seres da Lua” (1997). O primeiro parágrafo faz parte do conto que dá nome ao livro, no qual nos deparamos com uma espécie de guerra “conceitual”, choque de culturas levadas ao extremo, talvez o único tipo de guerra que poderia haver num povo antibelicista e pacífico por natureza como o brasileiro. O segundo parágrafo pertence ao conto “Nowhere man” e o terceiro ao conto “Naquela época tínhamos um gato”. O escritor Nelson de Oliveira é um pesquisador de estilos, garimpeiro de bons escritores e já escreveu e organizou livros de sucesso no meio literário como “Geração 90: manuscritos de computador”, “Geração 90: os transgressores”, “O século oculto” e outros. Tudo isso lhe deu um estilo diversificado e único que torna sua escrita leve, objetiva, direta, simples e acessível a qualquer leitor. Os contos de Nelson de Oliveira não cansam nem enjoam, são de uma digestibilidade impressionante. Em “Os saltitantes seres da Lua”, como bem diz numa das orelhas do livro, o autor “faz uma viagem em que percorre a infância e a maturidade, em seus desafios éticos, morais, suas perdas e crises, desespero e transformação”. O estilo “fantástico”, ou do “realismo mágico”, como alguns preferem, está presente nos contos de forma discreta em alguns e, em outros, nem tanto, mas imprescindível para a percepção da trama pelo leitor. A meu ver, o realismo mágico é que dá “cor” e “sabor” aos contos e, admito, sou fã incondicional do estilo e do escritor, claro.


Os saltitantes seres da Lua. Nelson de Oliveira. Editora Relume Dumará. 1997. 86 páginas. R$25,90 na Livraria Cultura.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Como falar dos livros que não lemos? Pierre Bayard


Calma, calma! O título é sensacionalista, eu sei. Mas o livro não é. Também não se trata de um livro do tipo “como ficar rico abrindo uma igreja na esquina?” ou, pior, “como emagrecer dormindo?”. Muito menos uma apologia à “não-leitura”. O título “Como falar dos livros que não lemos?” tem segundas e terceiras intenções. Primeiramente, foi para chamar a atenção mesmo e, segundo, porque muitas vezes nos deparamos com situações em que somos pegos de surpresa ao termos de comentar sobre livros que apenas ouvimos falar e não lemos. E aí? Não há solução milagrosa. O livro de Bayard não é um manual para espertalhões, nem estimula o fim da leitura. O professor de literatura Pierre Bayard apresenta ao público um ensaio, fruto de sua própria experiência profissional, muito bem humorado, lúdico e, ao mesmo tempo, faz um desafio ao leitor.

Com a leitura deste livro é possível que o leitor se livre da “culpa” e da “vergonha”. Agora poderemos interromper a leitura daquele livro chato, monótono, não merecedor do nosso precioso tempo, sem nos sentirmos culpados. Claro! Fica só aquele arrependimento de ter gasto um dinheirinho à-toa. E como tem livros assim! Eu, particularmente, não faço resenha ou comentário dos livros que não gostei. Fazer crítica negativa também é um marketing. Por isso, aos livros ruins concedo o esquecimento. Pierre Bayard veio para dar apoio ao leitor tradicional e dicas para leitores iniciantes. O autor cria categorias de livros. Os que não lemos, aqueles que apenas folheamos, outros que ouvimos falar e até os livros esquecidos.

Pierre Bayard defende o desenvolvimento “saudável” do leitor. Para o autor, todos os tipos de leitura e de “não-leitura” são válidos e ajudam a entender o mundo, absorvendo todo o tipo de informação. Bayard é categórico ao dizer que “a não-leitura não é a ausência de leitura”. A “não-leitura” é uma ação positiva, consistindo num ato de organização do leitor diante da imensidão de livros que estão a nossa disposição. O leitor deve saber selecionar os livros por áreas de interesse, por gosto pessoal, por resenhas, pelos comentários da capa, pelas orelhas dos livros, por sugestões de críticos. E, ainda assim, sempre submeter o livro ao seu crivo pessoal. Bayard nos lembra que o livro não pode ser visto como uma ferramenta para se enriquecer culturalmente, ou impressionar os outros. Segundo o autor, o livro deve ser visto como uma forma de autoconhecimento: "O paradoxo da leitura é que o caminho em direção a si mesmo passa pelo livro, mas deve continuar sendo uma passagem. É uma travessia de livros que o bom leitor realiza, sabendo que cada um deles é portador de uma parte dele mesmo e pode lhe abrir um caminho, se tiver a sabedoria de não parar ali."

“Como falar dos livros que não lemos?”, de Pierre Bayard, é da Editora Objetiva, preço médio R$29,00.



quinta-feira, 4 de março de 2010

Blablablogue – Crônicas e Confissões. Organizado por Nelson de Oliveira.



O escritor Nelson de Oliveira (“Naquela época tínhamos um gato”, 1995) já se tornou um referencial de consulta, com sua habilidade em descobrir e divulgar novos talentos literários. Graças aos seus artigos sobre a literatura brasileira contemporânea, publicados na internet e em livros sobre o assunto, pude conhecer trabalhos de excelentes escritores, tais como: João Anzanello Carrascoza (Dias Raros, 2004); Marcelo Mirisola (Fátima fez os pés para mostrar na choperia, 1998), Marcelino Freire (Balé Ralé, 2003), Rosário Fusco (A.S.A. – Associação dos Solitários Anônimos) e outros.

Neste livro, “Blablablogue – Crônicas e Confissões”, Nelson de Oliveira, através de uma pequena (quase ínfima) amostragem, revela-nos a magnitude do universo da chamada “blogosfera”. Embora tenham sido, equivocadamente, a princípio, caracterizados como espaços para divulgação de um suposto egocentrismo dos internautas, os Blogues hoje se tornaram uma fonte segura, eclética e inesgotável de informação e cultura. No livro, Nelson restringiu-se apenas aos blogues da sua “praia”: a literatura. O critério utilizado para selecionar os 21 blogueiros do livro foi o mais simples possível, a afinidade e o fato de conhecer os internautas. O próprio escritor é quem diz: “Curioso isso: os desconhecidos não me interessam tanto. Eu gosto de ler o blogue de pessoas que eu conheço, que moram perto de casa ou, no caso das que moram fora, estão sempre visitando São Paulo. Todas elas são apaixonadas por literatura e a maioria já tem livros publicados.” (p.158).

Alguns dos blogueiros selecionados para o livro, já são escritores conhecidos e de talento inquestionável, como o escritor pernambucano Marcelino Freire, do blogue - http://eraodito.blogspot.com; e o escritor gaúcho Fabrício Carpinejar, cujo blogue leva o seu nome – http://fabriciocarpinejar.blogger.com.br. Mas Nelson de Oliveira, com seu olho clínico, apresenta-nos vários outros novos escritores, entre os quais, destaco:

Andréa Del Fuego: blogue – http://delfuego.zip.net

“Acredito que a inteligência ou o espírito, como quiser, se manifesta quando há uma determinada configuração. Nosso corpo tem uma configuração X, nele o cérebro recebe e envia eletricidade, a base da comunicação, esta, o veio da inteligência. O corpo configurado pode abrigar o espírito e nele instituir faculdades, pois somos uma proposta em andamento. Se o homem, na fabricação de suas máquinas, tentar imitar a configuração humana: organismo e metabolismo, corremos o risco de constituir algo capaz de abrigar um pensamento. Foi o que fizeram conosco, é uma questão de conteúdo e continente. Daqui por diante tenha cuidado ao comprar uma boneca, ela pode se chatear se ficar presa no guarda-roupa.” (in “Cabeça e membros”, p.7)

Bruna Beber: blogue – http://didimocolizemos.wordpress.com

“Velhice é procurar montanhas e achar apenas montanhas de roupa suja. É classificar um disco como “agradável para lavar roupa” no trajeto entre a área de serviço e o macarrão que tá no fogo. / É abrir a janela de manhã pros cartões postais, atrás de sol, e notar que seu único cartão postal é o supermercado pão de açúcar. E ter que ir lá porque acabou o pó de café. / Mas acho que o raio-x da velhice (e da pobreza), mermo, é comprar congelados de um amigo do trabalho pra garantir uma boquinha no domingo. E, claro, esquecê-los no trabalho na sexta-feira à noite.” (in “Dolla”, p.44)

Ademir Assunção: blogue – http://zonabranca.blog.uol.com.br

“Ella é fumante há trinta anos. Semana passada tossiu durante duas horas, onze minutos e trinta e sete segundos seguidos, sem parar. Quase bateu seu recorde anterior. Nesta sexta-feira, Dia Nacional Anti-Fumo, decidiu passar o dia inteiro sem acender um cigarro. Estava indo bem até que viu na padaria a manchete na Folha de S.Paulo: “Serra propõe banir o cigarro de SP”. Não se deu conta inteiramente do golpe até ler a linha fina: “Se o projeto enviado à Assembléia for aprovado, só será permitido fumar ao ar livre ou dentro de casa”. Ella ficou tão abalada que precisou acender um cigarro.” (in Miniconto tabagista”, p. 67)

Ana Paula Maia: blogue – http://killing-travis.blogspot.com

“Às vezes parece que estou amolecendo. Que meu coração pode ser partido em alguns pedaços. Mas não. Quando amoleço, eu choro. E quando choro meu coração se fortalece. É um músculo robusto. Não dá pra perceber porque o meu peito é profundo. É profundo como minha alma, presa às coisas fora da minha dimensão palpável. / Sou sensível por fora, frágil como uma garotinha, mas aprendi a derrubar touros. Eles são fortes por fora e instáveis por dentro. Em meio à instabilidade dos outros, encontro um equilíbrio que move minhas relações. Às vezes desabo. Então eu durmo. Durmo muitas horas. Quando acordo, as horas transcorreram, o planeta girou, pessoas nasceram, morreram, mutilaram-se, desistiram, choraram, beberam, drogaram-se, se desesperaram, concluíram e recomeçaram. Eu acordo. Tomo um banho. Como alguma coisa. Retomo minha vida e me apoio nessas instabilidades que moverão meu novo dia.” (in “Mariposas fazem sombras em mim enquanto sobrevoam a lâmpada da sala”, p. 93)

Por fim, o próprio Nelson, conclui: “Para quem não costuma visitar blogues, esta coleção de crônicas e confissões deve ser entendida apenas como um convite, um aperitivo, uma plataforma de decolagem... O universo on-line é imenso: em cada blogue haverá dezenas de links para outros blogues igualmente interessantes, formando uma trama de infinitas constelações.” (p.158)

“Blablablogue – Crônicas e Confissões”, organizado por Nelson de Oliveira.

(Editora Terracota, 2009, 159 páginas, R$25,00 na Livraria Cultura)