quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A perspectiva do quase. Zeh Gustavo

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“Eu não sei fazer poesia... Mas que se foda!!! Eu odeio gente chique eu não uso sapato... Mas que se foda!!!” – É assim o refrão da letra da música de Charlie Brown Jr, em “Não uso sapato”. Poesia? Talvez, e há quem discorde. Mas são versos sim, que, antes de rebeldia, indicam sinceridade e liberdade de expressão. Escritor que escreve para agradar é um charlatão. E a produção de quem escreve sob encomenda é um lixo e não pode ser enquadrada como “literatura”. Faço esta breve introdução para falar de Zeh Gustavo, em “A perspectiva do quase” (2008, Editora Arte Pau Brasil, 79 páginas): claro exemplo de exercício pleno de liberdade (mais uma vez): “Eu sou propriamente uma anormalia.” (in “Caderno de desapontamentos”, p.77).

Nas artes plásticas, muitos artistas só atingem sua maturidade depois de muitos anos, após superar todas as amarras que os prendem ao mundo formal, acadêmico, estilístico. O resultado é o que se vê por aí, sem chance de confusão. E então podemos identificar, facilmente ou não, obras finais de um Picasso, um Salvador Dalí, um Iberê Camargo. Claro que a verdadeira arte não é feita para agradar, nem que seja apenas aos olhos. A receptividade é mera conseqüência, seja boa ou ruim, e é sempre questionável. A verdadeira arte é para levantar polêmica, questionamentos, fazer pensar, induzir à reflexão. Sem isso, a arte perde o sentido, vira mero objeto decorativo. E, obviamente, uns irão gostar e outros odiar. E aí volto ao que disse anteriormente. Em “A perspectiva do quase”, há muito mais que maturidade literária, e Zeh Gustavo revela-se um escritor que já veio decidido a tudo, pronto para o que der e vier, e, agora, já está até passando: “Vou falar a verdade:/ Nunca gostei de poesia.” (in “Os dois estalos”, p.13).

Em “A perspectiva do quase”, Zeh Gustavo já antecipa um pouco do conteúdo do livro no próprio título. E, como bem diz o Aurélio: “perspectiva” é “a arte de representar os objetos sobre um plano tais como se apresentam à vista”. E o “quase”? Bem, fica a critério do leitor, mas não há como fugir nem fazer de conta. E o leitor precavido deve se preparar para a leitura, “quase” como quem vai para a guerra; e, ainda assim, se surpreenderá: “Eu me habituei de estragar poesias./ De errado que eu, no meu hoje, me sinto capaz/ de esboçar o escrevimento de uma quase-poesia./ E aquele segundo estalo que eu tive/ creio não ter sido apenas um estalo: era um estilo.” (in “Os dois estalos”, p.14).

Zeh Gustavo não é apenas um artesão de palavras, ele as digere por faminta necessidade, ele corrompe criminosamente as palavras, sempre com suspeitas intenções (ainda bem que não há pena para este delito!); ele as destrói com o intuito de reciclá-las, fazer neologismos, alterar a semântica, inverter, virá-las do avesso, literalmente, e “quase” chega a um diagnóstico da sua estranha patologia: “e assim/ vou/ comendo/ minhas/ migalhas/ pelos antros/ da palavra” (p.15).

Zeh Gustavo até tem raros momentos de lucidez: “Começo a mudar meus pensamentos/ acerca da maturidade de ficar mais velho./ Creio exclusive que a maturidade/ pode ajudar a gente a atingir/ maiores crianços.” (p.18);

Em outros momentos, Zeh Gustavo “viaja”, ora descambando para a retórica filosófica, ora relativizando teoricamente a poesia, mas sem jamais perder o seu genuíno estilo: “os caracteres não têm caráter/ - a vida não é um monte de dados;/ o corpo precisa de estimulezas/ mais que de informatações;/ o meio só é o fim se houver infinitos;” (in “Programa de desgoverno”, p.19);

“Eu faço poesia-quase:/ solto frase abilolada para ajudar a prejudicar lirismos/ que se pretendam retos./ Só breco um poema para fins de embromá-lo/ em suas curvas de briga.” (in “Manifestim”, p.28);

“Pretendo ser desagradável./ Um dia almejo estar entre as maiores competências e lideranças/ no que concerne ao saber de palavras vãs.” (in “Canibal”, p.29).

Por fim, chego à conclusão que “A perspectiva do quase”, pouco importando se é perspectiva “cavaleira” ou “isométrica” (tecnicamente), não trata de “quase-poesia”, nem pode ser caracterizado como um “quase-livro”. O próprio autor (inteiro e não quase), Gustavo Dumas, busca se auto-interpretar e sabiamente declara: “O lirismo perspectivo do livro apresenta-se, pois, como um foco de resistência ante uma cultura urbana massificada e uma linguagem de mercado que diluem o eu e que partem da premissa da quantificação de tudo com vista à formatação contínua de um ávido onipresente supermercado global. É flor vermelha a sangrar a língua do discurso dominante.” (p. 79).

Zeh Gustavo é heterônimo de Gustavo Dumas, autor de “Idade do Zero” (2005)Mito da origem do futebol” (Cone Sul, 1997), “O povo e o populacro” (Cone Sul, 1998) e “Solturas, balões e bolinhas de papel” (Damadá, 2001). Zeh Gustavo é natural do Estado do Rio de Janeiro, é também compositor e poeta.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ainda Orangotangos. Paulo Scott


Ainda Orangotangos, o livro.

Em “Ainda Orangotangos” (2007, Editora Bertrand Brasil, 84 páginas, R$23,00), o escritor gaúcho Paulo Scott publica seu primeiro livro de “contos”, cujos temas variam, sutil ou drasticamente, da bandeira contra o preconceito, em narrativa linear, (vide “Um lugar como outro qualquer” p. 21) até o densamente psicológico (vide “Ainda Orangotangos” – p. 39). Mas, para quem já conhece a obra do escritor, seus “contos” não fogem do seu tradicional e marcante estilo. A prosa de Paulo Scott é ainda tão angustiante quanto suas histórias-curtas ou “poesias” (“A timidez do monstro” e “Senhor Escuridão”, ambos de 2006). Textos cujas narrativas estão, quase sempre, sob a atmosfera do medo, mais que o da insegurança (muito diferente da vida real?). Nesses contos curtos, a instabilidade emocional é uma constante perturbadora. A produção de Paulo Scott permanece ainda enigmática, sombria, quase... “alienígena”. E pensar que Paulo Scott é brasileiro, e, o que é melhor, gaúcho. “Still Orangutans, The Book!” – diriam os gringos numa tradução. O livro! Friso apenas para não confundirmos com “Ainda Orangotangos - o filme” (de Gustavo Spolidoro – 2008, 81 minutos), inspirado, principalmente, no conto homônimo do mesmo livro. Mas o livro merece destaque especial, à parte.

Nos contos de “Ainda Orangotangos” há predominância de uma temática complexa, com narrativas densas, personagens paranóicos e depressivos, ambientes claustrofóbicos, capazes de gerar desconforto, estranheza e insegurança no leitor. Lemos e voltamos, relemos e, quanto mais prestamos atenção, quanto mais analisamos, mais confusos ficamos. Interrogamo-nos com freqüência: mas que parte que eu não captei? Mas isso é ruim? São contos entediantes? Não, ab-so-lu-ta-men-te não. São contos fortemente caracterizados pela ousadia, pela inovação, ora na estrutura textual, ora na pessoa do narrador (ou narradores simultâneos - ?!). Contos que nos desafiam e nos impressionam. A realidade é lapidada com precisão e delicadeza (só o que realmente interessa nos é revelado), às vezes sob o foco do fantástico e do surreal, recursos estilísticos que se não nos assombram, perturbam, causam insônia, taquicardia. O resultado é um quadro de horror, pesadelo (febril). Apesar de tudo, os personagens dos contos são perfeitamente possíveis (há exceções, claro) e transitam pelas ruas de Porto Alegre (mas que poderia ser em qualquer cidade do mundo). O que pode incomodar e causar certo desconforto em alguns leitores é a descoberta da sua limitação interpretativa. É frustrante a percepção do não-entendimento imediato e, então, vemo-nos obrigados a reler, até a exaustão, se necessário (sou insistente, muito mais que teimoso!). Sugiro, então, fechar o livro e voltar a lê-lo no dia seguinte: com certeza, terá outra interpretação (ou... mais dúvida!).

Nas orelhas do livro e na capa há comentários de gente de peso: Marçal Aquino, Luiz Antônio de Assis Brasil, Charles Kiefer e Daniel Galera. Portanto não estou só. Minha voz não é dissonante. Prefacia a obra, José Castello, que disseca os contos e nos apresenta o livro, como verdadeira advertência ao leitor: prepare-se!

“... São relatos curtos os de Scott, que fuzilam o leitor com sua radicalidade. Depressão, horror, desalento que os humanos temperam com sexo. Já não importa a qualidade, já não importa o amor, interessa saber por onde deságuam essas energias, de que forma mitigam a grande dor e com que forças continuam em seu caminho. Gritos, não de prazer, mas de desespero, como “Insônia postiça” (p.29). O sexo vivido na fronteira da dor e do espanto. Como uma condenação./ O Estilo de Scott é cruel. Frases rápidas, tiros, cortes, disparos. Cenas que saltam à nossa frente, sustos, golpes. Palavras que deslizam em significados insuspeitos, venenos. O bem e o mal diluem-se no tédio. Personagens que mal aparecem, que se esquivam, que se escondem. Sem nomes, sem perfis, sem psicologia, agentes secretos a circular no grande turbilhão do real.” (p.11);

“... A ventarola da cabine ficou aberta, o vento entra e sai furiosamente, joga um frio que arde em meus lábios. O vagão balança como um torniquete frouxo, desejoso por descarrilar, nadando nos míseros segundos da queda (primeiro pela grama coberta de gelo, depois encosta abaixo), igual aos teus dedos mortos na minha boca.” (in “Os Robalos” p. 25);

“... As letras da folha estão em vermelho úmido. É sangue. Vou à janela, grito por socorro. Imediatamente, começam a arranhar a porta (parecem dezenas de unhas). Escrevo, desesperado: quem está aí? Ratos, é a resposta...” (in “Pusilânimes no café-da-manhã”, p.28);

“... Vai à cozinha, enfia o cateter na bexiga, urina no panelão de alumínio (a melhor coisa do dia), põe pra ferver. Senta no sofá, conta o dinheiro, abre os curativos. Ouve barulho na entrada, alguém se arrasta. Que idiota ousaria? A luz do corredor reflete na parede uma sombra lenta. Pela altura, um bebê.” (in “Ainda orangotangos”, p.42);

“... Pô, tio... não to querendo problema, me vende uma cartela e eu te pago depois, ele fala e encosta a testa na borda da tábua. Escuta aqui, neguinho... Não sou neguinho, tio!, meu nome é Martin. Não, diabo!, é neguinho, neguinho, o atendente vocifera, parado com as mãos nas grades: e cai fora duma vez... ne-gui-nho! A chuva aumenta. Sob a marquise: a claridade fluorescente, mais nada. O menino desencosta a cabeça da borda da tábua, ajeita o boné sob o capuz de náilon, uma lágrima escorre do olho.” (in “Instante duro”, p.62).

Querem ler o conto “Ainda orangotangos” na íntegra? Acessem, clicando no título do livro. Ou no endereço abaixo.

http://atimosotimos.blogspot.com/2009/12/ainda-orangotangos-paulo-scott.html

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ. Zé Urbano


Gramática? Sintaxe? Semântica? Não. Pode esquecer! Isso não existe no universo enigmático do escritor Zé Urbano. Não como nós conhecemos estruturalmente o nosso idioma. Não há possibilidade de se fazer comparações. Talvez, numa vã tentativa, um perigoso paralelo com “Memórias Sentimentais de João Miramar”, mas não, sem contar que Oswald de Andrade era um louco (ou quase isso). Epa! Loucura. Pode estar aí o liame, o fio de seda que pode nos mostrar um caminho interpretativo mais seguro. Essa mania dos “normais” (que se acham os tais) de ter certeza do tipo de chão que pisam. Por falar em chão, em Zé Urbano ele é movediço. O escritor apenas nos mostra um caminho, mas ele é sinuoso e muito traiçoeiro e há que se cuidar das minas que estão espalhadas no percurso e muito bem camufladas.


Irônica, debochada, e (por que não?) escatológica. Em seu livro intitulado “ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ” (pasmem, mas nem tanto), a “poética” de Zé Urbano é impactante, desafiadora e a obra poderia ser iniciada com uma breve advertência: “decifra-me se puderes!”. É como se recebêssemos um alfabeto inteiro para criarmos uma nova língua, partindo do zero absoluto. E Zé Urbano parece ser de outro mundo, de outro planeta ou de uma dimensão paralela para a qual o livro é apenas uma porta de acesso. Ah! Se Stephen King lesse mais do que escreve, provavelmente ficaria feliz em encontrar Zé Urbano. Terminamos o livro e nos vem à mente uma pessoa, meio-moleque daqueles que fedem vergamota (talvez o autor) rindo de nós, longe do nosso alcance (inteligentemente), exibindo um dedo em riste. Mas não nos irritamos, nem tampouco nos indignamos, apenas rimos. Talvez, rimos da nossa teimosa incapacidade de nos deixar levar pelo texto. Rimos da nossa pequenez como leitores ainda presos ao passado, incapazes de bem compreender o presente, quanto mais o futuro. E o “non-sense” (tão na moda) nos vem como explicação, mas é apenas estilístico e só nos ajuda realmente como um último recurso para descobrirmos o tamanho da nossa limitação. Zé Urbano está aí para nos mostrar que há um mundo inteiro, completamente diferente, muito além daquele percebido pelo nosso limitado ângulo de visão. Falei demais? Então, que tal curtir um pouco do próprio Zé Urbano, retratando o seu mal, pois, segundo ele mesmo: “...sofro de biscoitos ininteligíveis.” (p.98, in “As Momescas Cabriolagens do Mundo” – 2005).


“ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ (2005)


Himgróla, qomo qontinuar?

Sobrelhevêm as respostas aos borbolhetônes:

Morderei pãopãoqueijoqueijo

Sempre que a me convinher

Mastigarei Abcdefghijklmnopqrstuvwxyz

Incluindo alfa beta e cetéras

E assim brótarãolhesestes vérsínios

Tais quais qe lhes agradem e agradem e adragem.


Á annos ñao páÁÁra de rodar o wellocípe na garagem

Use carpas na estiagem

Feche boca na mastigagem

Atemsão clace repete comigo


ABCDEF é: Abequidef – ABEQUIDEF!

GHIJKL é: Guíjcle – GUÍJCLE!

MNOP é: Minópe – MINÓPE!

QRSTUVW é: Cristúve – CRISTÚVE!

XYZ é: Csíz – CSÍZ!


TODOS! Abcdefghijklmnopqrstuvwxyz. RÁPIDO!

ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ


MAIS RÁPIDO!

ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ

ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ” (p.122)



“... Sinco! Sei, seis! Sete!

Sente o impacto da pedra na cabeça!

É dramático,

É impressionante,

Refiro-me a Dante,

Já leu, monstrão nojentaço?

Não? Sim? Não? Sim?

Sim! Sim! Sim! Sim!

Beterrabas transgêêêêêêêêêênicaaaaaas!!!!” (in “A mil” – 2008 – p. 118)



“Eu conheço a Heloísa

vive cheia de coriza

mas ela nunca me avisa

quando vai soltar um escarro.” (p.92 in “Heloísa” – 2002)



“Hoje em dia

Eu passeava antigamente

Quase chegando

Ao ponto de partida” (p.11 in “Pequeno Enigma de Einstein”)


E por aí vai. Trata-se de um livro desafiador. Para leitores acostumados com o que a boa literatura nos apresenta. Não digo que agradará a todos, mas como já disse Nelson Rodrigues: “Toda a unanimidade é burra.” Vale, isto sim, ler e tirar sua própria conclusão. Quem sabe não começamos a olhar o mundo com outros olhos, mesmo que sejam vesgos ou... furados.


O livro “ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ”, de Zé Urbano é de 2009, publicado pela editora Ibis Libris, Rio de Janeiro. Zé Urbano é o pseudônimo de Gustavo Jobim. Mais sobre o autor acesse:


http://www.fotolog.com.br/zeurbano

http://zeurbano.blogspot.com/

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Contos D’Escárnio / Textos Grotescos. Hilda Hilst


Divertimento garantido! Uma crítica mordaz, veemente, ao nosso “moralismo” sem sentido, sem qualquer pudor (falso) na linguagem. O leitor que se sentir incomodado, que faça uma auto-crítica ou feche o livro e vá ler livros evangélicos ou “minutos de sabedoria”. Trata-se de uma sátira muito divertida, com doses generosas de ironia, muito bem estruturada, típica de uma grande escritora. Em “Contos D’Escárnio”, Hilda Hilst deixou-se “incorporar” por um personagem masculino, um sessentão chamado Crasso. Coincidentemente a mesma idade da autora, em 1990, ano da publicação do livro. Em primeira pessoa, como todo livro de memórias, o narrador Crasso registra suas “safadezas da maneira mais chula possível”, deixando o leitor completamente pasmo, embasbacado, pois, independentemente do fato de sabermos distinguir autor e obra, inconscientemente acabamos por vincular uma coisa e outra. É natural. E quem escreveu o livro foi uma “Senhora” de 60 anos. Até poderia ser comum uma senhora escritora de 60 anos escrever sobre “auto-ajuda”; “livro-psicografado”; “coisas religiosas”; “memórias-reais” e outras baboseiras suaves e entediantes, que infestam as livrarias (e o pior é que estas porcarias vendem!). Mas não com Hilda Hilst. Não há como enquadrar Hilda Hilst dentro do padrão médio de uma mulher brasileira de 60 anos. Hilda Hilst é um fenômeno, tanto poeta como prosadora.

O professor Alcir Péroca é quem prefacia o livro e diz, com uma grande bagagem de experiência: “Contos D’Escárnio é o terceiro livro da tetralogia obscena de Hilda Hilst. Se fosse necessário resumir o seu enredo, não haveria muito o que dizer, pois, como está patente em todo o livro, Crasso, o narrador, não tem nenhum gosto por seqüências arrumadas de fatos. Pretende escrever à maneira dos verbos chineses, sem marcação temporal, opondo-se programaticamente a qualquer expectativa de retomada da grande tradição do romance romântico-realista, com começo, meio e fim.”(p.5);

“Na costumeira louvação da esperteza do jeitinho nacional, Hilda reconhece perfeitamente o selo da cumplicidade geral da bandidagem contra a esperança do reconhecimento, de que a liberdade da literatura poderia ser a principal caução. Assim, a moral de sua anti-história é a de que onde triunfa a idiotia, o abestado, não resta ao narrador honesto senão o desengano e o suicídio.(...) Em terra de pornógrafos, para Hilda Hilst, o que cabe ao escritor sério é a revelação da pornocracia, isto é, da violência hegemônica da identidade bandalha.”(p.7).

“Meu nome é Crasso. Minha mãe me deu tal nome porque tinha mania de ler História das Civilizações. E se impressionou muito quando leu que Crasso, um homem muito rico, romano, foi degolado e teve a cabeça entupida de ouro derretido por algum adversário de batalha e conceitos. Mamãe morreu logo depois de me dar esse nome. No dia seguinte ao meu batismo. Dizem que foi um ataque fulminante, que eu estava logicamente no berço ou no peito quando ela falou: Crassinho. Suspirou e morreu. Era linda, elegante, gostosa, segundo meu pai, que morreu um mês depois. Só que a morte dele foi diferente. Morreu em cima de uma mulher nada elegante mas muito mais gostosa que mamãe, segundo me disseram. A mulher era puta, daquelas rebolantes, peitudas, tetas em riste. Os homens gostavam assim naquela época.”(p.13);

“Querida Clódia: há algumas coisas para te dizer daqui do meu voluntário exílio. Por exemplo: quando eu morrer, quero que ao invés das bolinhas de algodão que usualmente colocam nas narinas do morto, que você providencie bolinhas de pentelho de virgem. Sei que será uma estafante tarefa porque primeiro: não há virgens. Segundo: as que seriam virgens são impúberes e portanto sem pentelhos, glabras... Outra coisa importante: pinte uma vagina dentro de uma casca de ovo, com nuances bleu foncé e negro, e estando eu morto coloque a pequena tela no bolso da minha calça. Do lado direito. Enquanto coloca, alise com brandura meu caralho-prega (este que eu agora aliso enquanto te escrevo e que está tudo aquilo túrgico, duro, aceso, pulsante, vibrátil, túmido,sem que os amigos ao redor do esquife percebam, para não ficar constrangedor para mim, percebes?)” (p.80);

“Líria me contou que antes de conhecê-la, o professor Gutemberg só pensava na morte. Era triste sábio e profundo. Sua caceta sempre foi magnífica mas o desempenho era prejudicado pela leitura excessiva. Sabia História como ninguém, e boa parte de sua antes-surdez e melancolia era devido à História. Dizia à Líria que a Humanidade continuará seu caminho demente, que somente um idiota não vê que os homens continuarão per secula seculorum a cometer desatinos imundícies baixezas escroterias, e que as religiões e as igrejas haviam criado as guerras a miséria a loucura a culpa.”(p.95)


Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930 e faleceu em 04 de fevereiro de 2004, aos 73 anos. Poeta, ficcionista, dramaturga, publicou seu primeiro livro em 1950: “Presságio”. Escreveu por mais de 50 anos, sendo reconhecida hoje como um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea.

“Contos D’Escárnio/ Textos Grotescos” é de 2001, publicado pela Editora Globo, São Paulo, 136 páginas.